CUBA NÃO É AQUI
… e o extraordinário privilégio, o infinito prazer da cultura!
Faz alguns dias vi um documentário chamado Todo Cambia (2013).
É sobre a formação artística em Cuba e é estruturado sobre depoimentos de vários artistas que cursaram as escolas de arte no país.
O documentário começa com um trecho de um discurso de Fidel Castro falando sobre cultura. Fidel era uma homem culto e sua primeira frase no discurso dá o tom de sua fala: «eu sei o que não sei». Ele fala de forma simples e direta da importância da cultura e da educação na formação de um cidadão e do país.
Fidel pessoalmente, entre muitas outras prioridades após a Revolução, definiu onde funcionaria a Escola Nacional de Artes. Achou que um antigo Clube de Golfe, frequentado pela elite americana que usava a ilha para diversão, tinha atmosfera, era um lindo local para abrigar e promover a formação dos futuros artistas do país.
No filme revi a Havana que tanto percorri, Habana Vieja, El Malecón, casas e construções que um dia foram majestosas, mas que beiram a ruína como se vê nas imagens. Revi a Escola Nacional de Artes também, que visitei algumas vezes acompanhando amigos que estudavam lá.
Tive a oportunidade de viver na ilha, de 1991 a 1993, primeiro participando do Ballet de Camaguey e depois em Havana, onde além de aulas, tive a chance de tomar parte de apresentações de Giselle com o Ballet Nacional de Cuba, na época sob direção de Alicia Alonso. Vinha de alguns meses em Porto Alegre, depois de dois anos passados na Ucrânia e a total mudança de cenário foi uma experiência muito rica e totalmente necessária na época porque me sentia uma estrangeira em meu próprio país. A experiência vivida na União Soviética havia sido transformadora e no regresso a Porto Alegre sofria para me readaptar, via o consumo exagerado, o desperdício desmedido, achava tudo muito desinteressante.
Foi com alívio que desembarquei em Havana e já nos primeiros dias no Caribe, senti a força do clima tropical sobre a ilha. Presenciaria algumas vezes o fenômeno: um forte temporal, que mais parece o fim do mundo e que logo dá lugar a um céu limpo com sol, como se nada tivesse acontecido. Depois de enfrentar o inverno russo era uma benção passar os dias sempre quentes com roupas leves, aproveitando o sol e sentindo o mar tão próximo.
A escola de ballet em Cuba tem clara influência da escola russa, muitos professores viajaram do velho mundo para lá e creio que muitos maestros cubanos tiveram formação diretamente com estes professores. Posso até dizer que a Escola Cubana é uma Escola Russa adaptada, porque afinal o ballet chegara ao Caribe. Mas o fato é que existe uma escola, ela é forte e forma excelentes bailarinos.
Os cubanos são dançantes por natureza, todos na ilha, sejam crianças, adultos ou idosos, dançam salsa e dançam bem! Eles são também muito musicais e lá, conheci muitos músicos, alguns com formação na escola, outros autodidatas, gente muito talentosa. O povo é uma grande mescla prioritariamente de origem espanhola e africana. Gente muito alegre, que lutou para ter direito a coisas básicas como saúde e educação e que consegue fazer piada de tudo ao mesmo tempo que sabe argumentar por suas ideias.
Todo tempo que passei lá, a ilha estava no chamado Período Especial. O muro de Berlin já havia caído e a União Soviética havia se desfeito. Cuba sofria com a falta de petróleo, de comida, de energia. O bloqueio americano seguia e então, havia racionamento sempre. Muitas vezes andando pela rua a noite, acontecia um «apagón» e tudo ficava escuro. No início me assustava, pensando que poderia ser assaltada ou sofrer alguma violência, depois percebi que nada absolutamente poderia acontecer, Cuba era uma ilha totalmente segura.
Algo que notei logo que cheguei na ilha foi o quanto estava acostumada a classificar, inconscientemente, meus interlocutores. Pela forma de vestir, pelo local onde se encontram, pelo vocabulário que usam, etc. Em Cuba é possível perder todas estas referências, nunca sabes exatamente com quem estás falando e as pessoas não fazem questão de deixar isso claro, como um rótulo. Terás que conversar com elas para descobrir e podes encontrar qualquer um de forma acessível, seja para descobrir que é um trabalhador braçal ou um artista ou um PHD em qualquer coisa. Acho que é porque não há analfabetos em Cuba, todas as pessoas lá tem acesso a educação e isso traz consistência e dá dignidade.
Um dos pontos altos de minha estada na ilha foi a convivência com artistas de diversas áreas: música, artes visuais, artes cênicas. Isso era incrivelmente interessante, nas festas e reuniões, todos se juntavam e se conheciam. Aliás, o encontro já era a festa…
Levei tempo para entender o que no documentário fica evidente. Eles cursaram a Escola de Artes juntos e esta criava oportunidades de convivência e troca entre eles. Estavam formando artistas, mas mais do que isso formavam pessoas e daí o interesse por estimular o encontro, o embate de idéias, o senso crítico, o contato com a realidade das comunidades e o sentido de pensar seu papel na sociedade enquanto artista. Ver no documentário aqueles artistas falando com tanta propriedade de sua formação, com um discurso bem articulado que vem da experiência é algo que me emociona.
Foi em Havana que tive, por meio de um grande amigo diretor de teatro, Victor Varela, os primeiros contatos com uma dança diferente para mim, que não era ballet clássico. Da forma como me foi apresentada, abriu meus horizontes estéticos de forma irreversível. Posso dizer que esta foi a grande transformação que sofri em Cuba. Meu amigo insistia que eu podia ser muito mais que uma intérprete, uma bailarina clássica e podia explorar as tantas outras formas de dança que surgiram de movimentos interessantes pelo mundo. Ele me convenceu que meu temperamento era outro e foi me mostrando pacientemente trabalhos instigantes que iriam influenciando um corpo já meio cansado do repetitivo repertório clássico e de viver princesas, cisnes e fadas.
Hoje, vivendo aqui no Brasil e olhando nosso contexto atual, valorizo ainda mais a Escola de Arte. Ela pode formar grandes artistas, mas pode também simplesmente formar pessoas mais sensíveis, que possam frequentar um museu ou um concerto musical e articular uma opinião própria e ter senso crítico.
E isso, ao meu ver, já é muito e faria toda a diferença!